Uma das aplicações mais interessantes da modificação genética em aves é a possibilidade de utilizá-las como biorreatores para a produção de proteínas recombinantes, principalmente de interesse terapêutico.
A tendência de alta deste tipo de tratamento, em forma de vacinas, enzimas, anticorpos monoclonais etc., implica que modelos avícolas como os que são descritos a seguir poderiam se tornar alternativas viáveis aos sistemas de produção convencionais, para poder satisfazer parte dessa demanda crescente de proteínas recombinantes terapêuticas em um mercado global que, segundo as análises, poderia superar os 200 bilhões de dólares em 2023.
GERAÇÃO DE AVES GENETICAMENTE MODIFICADAS
Desde a geração do primeiro animal geneticamente modificado, nos anos 80, até hoje, grandes avanços neste campo têm sido alcançados.
No entanto, muitas das estratégias implementadas em mamíferos não foram diretamente aplicadas em aves, resultando na necessidade de desenvolver metodologias específicas.
Um aspecto chave foi a otimização dos procedimentos de cultivo do embrião, podendo-se diferenciar duas alternativas (Figura 1):
Em aves, as metodologias de transgenia podem ser aplicadas sobre o embrião, as células sexuais masculinas ou as células germinativas primordiais (Figura 2), destacando recentemente a utilização destas últimas como alvos da modificação genética.
CÉLULAS GERMINATIVAS PRIMORDIAIS
As células germinativas primordiais (PGCs) são as precursoras dos gametas e se originam a partir do epiblasto do embrião, realizando um processo de migração via sistema vascular, até a crista genital, onde se formarão as gónadas.
Uma vez modificadas, as PGCs são reintroduzidas em um embrião receptor, ou nas gónodas de um adulto. Gera-se, assim, um indivíduo que, geneticamente, se denomina “quimera”, ao ser portador em sua linha germinal tanto de células próprias, como de outras derivadas das PGCs transplantadas. Seu cruzamento com indivíduos não modificados originará parte da descendência transgênica. |
METODOLOGIA DE TRANSFERÊNCIA GÊNICA
Diferente dos mamíferos, onde a microinjeção de DNA no zigoto é de uso frequente para a geração de animais transgênicos, esta técnica é difícil de aplicar em aves.
No entanto, é possível realizar no embrião, ainda que, por este conter um número muito elevado de células – inclusive em estágios iniciais -, frequentemente são produzidos fenômenos de mosaicismo quando nem todas as células integram o transgene.
Uma das estratégias mais eficientes nas aves é a transgênese com vetores virais.
Nos últimos anos foi desenvolvida uma série de técnicas englobadas sob a denominação de edição gênica e que permitem realizar modificações muito precisas com elevada eficiência.
O sistema se baseia no reconhecimento a partir de um RNA “guia” do ponto preciso do genoma onde se deseja realizar a modificação, e no corte dessa sequência alvo por meio da nuclease Cas9, que atua como uma tesoura molecular.
AS AVES COMO BIORREATORES
As proteínas recombinantes comercializadas para uso terapêutico humano são produzidas, fundamentalmente, em plataformas de cultivo de bactérias, leveduras ou células de mamífero.
Os dois primeiros sistemas biológicos não permitem determinadas modificações proteicas características das células de mamíferos e aves, obrigando a modificação posterior in vitro e encarecendo o produto final. Por sua vez, os cultivos de células de mamífero apresentam um custo muito elevado.
Após décadas de pesquisas, a alternativa de utilizar animais transgênicos como biofábricas para a obtenção de proteínas humanas se tornou uma realidade quando, no ano de 2006, a UE aprovou a comercialização de antitrombina III humana purificada a partir do leite de cabras transgênicas.
No caso das aves, o objetivo é a acumulação da proteína recombinante no ovo, que proporciona uma matriz estéril e de fácil acesso.
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Um dos aspectos chave a ter em conta para a produção de proteínas recombinantes em aves é a escolha entre a acumulação da proteína na clara, ou na gema. As proteínas da gema têm, em sua maioria, origem hepática, de onde viajam ao ovário e, consequentemente, por meio da corrente sanguínea, pode desencadear respostas indesejadas no animal.
Ao contrário, as proteínas da clara são produzidas nas células excretoras do magnum do oviduto. Esta síntese localizada minimiza os possíveis fenômenos adversos de reabsorção à corrente sanguínea. Além disso, a clara representa a fração majoritária do ovo. Tudo isso faz desta variante a mais utilizada.
Para controlar a síntese proteica, são utilizadas sequências promotoras que controlam o processo de expressão do gen codificante da proteína de interesse.
ESQUEMA GERAL DE UM EXEMPLO PARA PRODUZIR UMA PROTEÍNA RECOMBINANTE HUMANA NA CLARA DO OVO
Na Figura 5 se representa um possível desenho para gerar os animais quimera fundadores (geração G0) a partir da modificação genética de PGCs (etapas A-D) e os cruzamentos a serem planejados a partir destes animais G0 (etapas E e F), destinados à obtenção das fêmeas produtoras da proteína de interesse, que se acumulará na clara de seus ovos. A seguir, estas etapas são descritas de forma simplificada:
NA PRÁTICA
São inúmeras as pesquisas realizadas, a partir de diferentes projetos, permitindo a produção, em ovo, de proteínas humanas de interesse, entre as quais:
ativador tisular do plasminogênio
eritropoetina
fator de crescimento epidérmico, ou
interferon beta
Na Europa, desde 2015, é comercializada uma proteína terapêutica humana produzida em clara de ovo.
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Este é um dos três únicos fármacos recombinantes gerados em biorreatores animais, que são comercializados hoje (os outros dois são produzidos em leite de cabra e coelho, respectivamente).
CONCLUSÕES
Nos últimos anos grandes avanços foram conseguidos na transgêneses aviárias, sendo possível desenvolver metodologias eficientes, entre as quais a modificação genética de PGCs e a aplicação do sistema CRISPR/Cas9 de edição gênica.
O uso de aves como biorreatores tem se mostrado um sistema eficiente para a produção de proteínas recombinantes humanas, com vantagens como a fácil escalabilidade, ou a inocuidade voltada aos animais de produção, com o que traz perspectivas promissoras de futuro. |